quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

RECORTES DE UMA AMIZADE


(Rejane Ribeiro)*

Estivemos, por três momentos distintos, nos mesmos locais, na mesma hora e assistindo aos mesmos eventos. Mas quis o destino e nos conhecêssemos no Acre. Rimos muitas vezes dessa história. Quem diria! Tentávamos entender a mão divina. Nem precisava.

De imediato ficamos amigos. Era uma daquelas amizades de causar inveja, tamanha era a sintonia que havia entre nós. E quando estávamos juntos o riso corria solto. Bem, risos de minha parte, da parte dele eram gargalhadas. E que gargalhadas! Impressionante como uma pessoa conseguia fazer alguém sorrir, não de um fato em si, mas do simples fato de ver a outra se divertir.

Para que nos entendêssemos não eram necessárias palavras. Bastavam os pensamentos. Muitas vezes só os olhares. Evidente que em certas ocasiões nem nos olhávamos, a fim de pouparmos os outros do nosso riso, sobretudo do constrangimento.

Como a vida era divertida com o Zálistom. Certamente foram alguns dos melhores anos de minha existência. Ele ali, sempre ao meu lado. Um irmão, um amigo, um companheiro, um pai, um tudo. Foram anos, acima de tudo, de muita alegria, pois por onde ele passava contagiava todos.

Era um profissional brilhante, tanto na educação física quanto na fisioterapia. Entretanto, era do ofício de fisioterapeuta que emanava a luz de todo seu ser. Suas mãos eram milagrosas. Carregava nelas a cura para diversos males, quer fossem de ordem física ou emocional. Sei que nesse momento de sua passagem é esse brilho que vai lhe garantir a condição de transpor a barreira deste plano para chegar ao astral e colocar-se ao lado de Nosso Senhor Jesus Cristo, do Divino Pai Eterno e da Virgem Santíssima Mãe.

Durante todos esses dias lembrei à Veriana de diversas passagens engraçadas e significativas de minha vida, na companhia de seu padrinho. Como num flashback, vi o dia em que eu e ele fomos deixar o amigo Cirilo no aeroporto. Chegando lá, Zálistom foi até o balcão da Varig e comprou uma passagem para o Rio de Janeiro, me olhou, estendeu a mão, entregou as chaves da casa, do carro e da clínica e disse: “ vou aproveitar e ir junto com ele assistir ao show do Sting. Cuida das coisas, quando eu chegar lá te ligo”. Foi assim: de bermuda, camiseta, chinelo e apenas com os documentos. Precisava de algo mais? Claro que não. Esse era o Zálistom.

Outra imagem foi quando ele entrou no Hospital Santa Juliana (acompanhado de Brenda), no dia em que Veriana nasceu (a bebê fez questão de aparecer dois meses antes do combinado e dois dias antes da mudança de casa).
- E aí, que tu queres que eu faça?
– Queria que fossem na casa onde as coisas do bebê estão lacradas. Pega umas roupas, leva para lavar e traz pelo menos uma para ela não ter que ficar nua no meio de tantos outros bebês desconhecidos (caímos na gargalhada)
- Se vier com as pernas e a bunda da mãe, vai ser um perigo (mais risos e contrações).
- Para de me fazer rir seu f.d.p.
- É pra já. Ta nervosa santa!
Tempos depois:
- As roupas vão demorar um pouquinho para secar. Por enquanto veste estas do Emanoel (até hoje guardo), acho que servem. Pelo menos a menina não vai ser acusada de atentado ao pudor.
(Enquanto isso, lá no berçário as enfermeiras reclamavam).
- Essa menina não tem roupa não? É indigente? Que mãe é essa que não traz roupa pra hora do parto?

Lembrei emocionada de um dia em que eu estava descansando de resguardo; ele e o Toinho conversando amenidades, sendo que um (Zálistom) cozinhava e outro lavava fraldas. Quando a Veriana chorava se revezavam até o berço, como que pajeando a cria. Quando finalmente a comida ficou pronta (era também um exímio cozinheiro. Conseguia preparar qualquer prato com poucos ingredientes), foram me buscar no quarto e ele não deixou por menos:
- Nem Jorge Amado esperava que a ficção fosse tão verdadeira. Ah, mulher de sorte! Dona Flor e seus dois maridos. Quando que se poderia imaginar que no Acre tivesse uma. Bora! Levanta e vamos comer antes que a menina acorde. Cuida, cuida que os homens têm de trabalhar. Mordomia agora só na hora do jantar (foram dias assim).

E quando tive de concluir a graduação plena em educação física? Naquela época não tinha ninguém que pudesse cuidar da Veriana. Como não tinha (e ainda não tenho) parente nem aderente no Acre, era com ele que eu dividia algumas tarefas do cotidiano. Pelo menos por durante um ano, Zálistom almoçou todos os dias na minha casa. Após o almoço, íamos para sua casa/clínica que ficava localizada onde hoje é o Diretório do PT. De lá eu pegava o carro dele, deixava o Suiá na escola e seguia para onde trabalhava. Ele dava um cochilo rápido e ela ficava dormindo a tarde toda. Quando finalmente Veriana acordava, ele fazia a mamadeira, dava banho, levava ela para dentro da clínica e atendia os pacientes com a menina ao seu lado ou deixando-a brincar com a clientela. No final da tarde eu pegava o Suiá na escola, voltava para clínica, tomava banho e ia com a Veriana para o curso. Quando dava umas sete da noite o Toinho passava para pegar a baby e levar para casa. Foram anos de muita batalha, mas de muito amor e cumplicidade. Coisa que eu não trocaria por dinheiro nenhum desse mundo. Às vezes eu e Suiá saíamos bem de mansinho para não acordar os dois. Era (e é) muito linda a lembrança dos dois juntinhos na cama e dormindo como anjos. Certamente eram tempos de Deus na terra (parafraseando o povo do Alto Santo).

Foram tantos momentos. As noites intermináveis e aqueles dois cinéfilos assistindo aos lançamentos e clássicos, com direito a horas de comentários e reflexões. As leituras silenciosas, com cada um num canto da casa. Entre um gole e outro de vinho branco, as inúmeras confissões. A arte da culinária sendo dividida entre uma boa música, preferencialmente um Jazz, e uma boa companhia. Gente, aquele garoto tinha estilo!

Antes de voltar para João Pessoa, ele se mudou de mala e cuia lá pra casa. Depois disso perdemos o contato. Naquela época não se tinha a facilidade que se tem hoje. Celular e internet, eram raridade. Nosso contato só se restabeleceu quando ele já estava em Portugal e bem recentemente.

Quando esteve em 2006 por aqui, colocamos em dia nossas conversas. Ficou maravilhado com Rio Branco. Falou-me que quando teve o AVC, chegou bem pertinho da Luz, mas que solicitou permissão para fechar algumas coisas que havia deixado em aberto. Como faço parte de uma Doutrina Espírita, naquela hora muitos pensamentos me passaram pela cabeça: Esse neguinho veio se despedir? Será? Esta sensação só foi amenizada quando combinamos de nos ver em janeiro de 2007, em João Pessoa.

Durante esse um mês de férias fizemos a festa. Ficamos no apartamento de uma amiga, na praia do Bessa. Tomávamos café da manhã em Manaíra, na casa de mainha e aportávamos no Poço, na casa de Zailde, sua irmã. O quintal da casa dela dava para o mar, com direito a vista para praia de Areia Vermelha. Fizemos várias incursões. Levou-me para conhecer diversas praias, o local onde Suiá nasceu; os bares que freqüentava no tempo de estudante universitário. Conheci seus amigos e com eles me diverti muito. Veriana foi praticamente adotada por sua irmã e compartilhou da amizade de Luiza, Marcelo, Fernando e Letícia, sobrinhos adolescente. Fizemos compras, fomos ao teatro, cinema, bares e restaurantes. Degustamos da melhor culinária que se possa imaginar, viajando por cada região do planeta, onde em cada uma delas ele tinha uma história para contar. Disse-me que já havia realizado um grande sonho, que era conhecer o mundo. Disse-me, ainda, que trabalharia mais uns quatro anos, o tempo suficiente para comprar mais imóveis em João Pessoa e voltar para viver apenas de renda, sem precisar trabalhar. Convidou-me para fazer uma visita em Portugal, e que se eu quisesse fazer minha pós-graduação na cidade do Porto, as portas de sua casa estavam abertas. Convidou Veriana para passar uns meses na Europa, com ele e Raphael. Tiramos muitas fotos, com sua máquina super-hiper-mega potente. Vimos o pôr-do-sol na praia do Jacaré, ao som do Bolero de Ravel, quase todas as tardes. APROVEITAMOS! Nos abraçamos e nos beijamos muito. E rimos, rimos e rimos de tudo que sequer poderia ter graça aos olhos de outros.

Sempre soube que Deus foi muito misericordioso comigo em por no meu caminho uma pessoa como o Zálistom. E mais misericordioso, ainda, em poder me proporcionar uma oportunidade dessas de me colocar no seio de sua família e apresentar sua afilhada aos seus. Sinto por eles este momento de dor, pois sei o quanto ele era querido. Na noite de Natal tive a oportunidade de me despedir dele. Foi durante o hinário, lá no Alto Santo. Quem nesse mundo de meu Deus já tomou Daime, Ayahuasca, Vegetal ou Cipó sabe do que estou falando. Não posso revelar os segredos e mistérios que envolvem esta Doutrina, mas posso dizer apenas isso: “ele viaja em águas poucas, mas com a certeza de chegar”. Está bem acompanhado, vai passar por uns apertos necessários para se desprender daqueles que vai deixando. Não quer que fiquemos chorando, mas sim que façamos preces para que ele possa atravessar. De minha parte, só sinto que não tenha dado o tanto que recebi. Mas fica a certeza de vamos nos encontrar novamente, afinal, uma ligação como esta certamente não é de hoje, nem desse tempo. São anos de evolução.

Segue em paz, meu amigo!
Que a Virgem Soberana Mãe e Nosso Senhor Jesus Cristo lhe acompanhem.
E que o Divino Pai Eterno lhe coloque em bom lugar.

* Rejane Ribeiro é mãe da Veriana e do Samuel

3 comentários:

Anne Nascimento disse...

sim,me emocionei, ri... tudo no mesmo post

E essa encarnação só fez os dois (sua mãe e seu padrinho) apertarem os laços.

Ana Helena disse...

lindo,lindo!
ele me parece ter sido uma pessoa iluminada!!
=*

Anônimo disse...

Lindo mesmo!! Será que quando eu morrer alguém vai escrever assim pra mim, hein? Te adoro Veri, Feliz Ano Novo!!!