terça-feira, 12 de outubro de 2010

memória conveniente

Eu te esqueci. Juro. Já quase não lembro mais de como seu rosto ficava vermelho quando você bebia, ou da forma que colocava seu nariz no meu pescoço. Você dizia que gostava do meu cheiro. Mas te esqueci. Você não passa mais nos meus pensamentos pela manhã. Não quero mais saber daquele sofá onde nos deitamos. Você me olhando nos olhos, revelando seus segredos. Aquele brilho de admiração no olhar. Você é tão diferente, dizia. Você me fazia sentir especial, e eu nem lembro mais como é essa sensação. Me esqueça de suas memórias. Não venha me falar sobre nossas saídas a noite, escondidos de tudo e todos, fugindo principalmente de nós mesmos. Não quero mais saber. Não divago mais sobre onde você está ou porque desapareceu da minha vida. Até fico feliz. Ainda bem. Sumiu. Não apareça mais. Eu não quero mais lembrar de você. Minha memória é fraca, vamos deixá-la assim.

Um comentário:

Lia Araújo disse...

Para uma barriana!

O Menino que Carregava Água na Peneira

Manoel de Barros

.

Eu tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e sair
correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo que
catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio
do que o do cheio.
Falava que os vazios são maiores
e até infinitos.

Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira,

com o tempo descobriu que escrever seria
o mesmo que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu
que era capaz de ser
noviço, monge ou mendigo
ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro
botando ponto final na frase.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.

O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.

A mãe falou:
Meu filho você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os
vazios com as suas
peraltagens
e algumas pessoas
vão te amar por seus
despropósitos