quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

aborto

Um dia Luiza desceu as escadas, passou pelos corredores da prefeitura - onde trabalhava, ganhando seus míseros 500 reais do estágio no setor de contabilidade, mesmo ela estudando ciências sociais -, saiu para a praça e começou a andar ladeira a baixo. Já tinha se esquecido do tempo de tanto andar quando chegou ao seu destino. Contou no relógio três vezes, mordeu o lábio inferior mais duas, e quando a conta de suas ações - mínimas - chegou a 95 foi atendida por aquele ladrão de anjos. abriu as pernas, e deixou que lhe tirasse tudo, puxando com força e derramando o sangue em gotas que caíram em abundância no chão. pingando, pingando, pingando, jorrando. Parecia-lhe que todo o sangue do corpo começou a escorrer por entre as pernas. E por entre essas foram caindo folhas, todas manchadas de vermelho, de escritos antigos, novos, presentes e passados em futuros nem um pouco distantes do pretérito imperfeito dos amores gramaticais. e a cada página que caia, mais branca Luiza ia ficando, vendo cada um de seus pequenos bastados jogados em meio ao sangue derramado. Porque por leite não se chora, mas por sangue derramam-se litros de águas salgadas - apesar de as águas de Luiza não virem do mar, Luiza era garota de rio. rios barrentos. os rios que só enchiam em janeiro (nunca em fevereiro) e que ela deixava ir embora com suas águas por esgotos e banheiros escuros. então chorava as águas barrentas sem peixe, por entre sangues barrentos e sem peixe, e páginas manchadas pelas mesmas águas e sangues barrentos, porém, páginas cheias de peixes , bois, galinhas, vacas, cobras, jacarés e todos os animais que se tem direitos neste mundo animal de meudelsú. Quando não pode mais, ajoelhou-se no chão, urrando como só as grávidas podem, deu o último empurrão, deixando que aquela bola de sangueaguagenteanimalpaginas caísse no chão e chorasse com os olhos aberto, as mãos pequenas agarrando-lhe o cordão umbilical, que Luiza rapidamente se pôs a cortar com os dentes. Rezou uma Ave Maria, uma solitária, porque nesses casos, só Maria, e levantou cuspindo o sangue de aborto seu. Ali, jazia Mariana Sofia.

Nenhum comentário: